O primeiro decreto editado no governo Lula (PT) para revogar as normas criadas por Bolsonaro que facilitavam e ampliavam o acesso da população a armas de fogo e munições está afetando também o treinamento de atletas. Os atiradores se preparam para provas olímpicas e paralímpicas visando Paris-2024 e o Pan de Santiago, entre outros torneios. Eles se encaixam como CACs, a famosa sigla para colecionadores, atiradores e caçadores, mas tinham privilégios por terem o esporte como profissão. Sob Bolsonaro (PL), os CACs tiveram acesso facilitado a armas e munição. Lula anulou decretos do antigo governo sobre esse tema, atingindo também os atletas.
O tiro esportivo é modalidade olímpica desde 1896, e trouxe as primeiras medalhas olímpicas para o Brasil em 1920, na Bélgica. Até dezembro do ano passado, um atirador esportivo que comprovasse ser atleta de alto rendimento podia comprar 5 mil munições ao ano, com flexibilidade para adquirir nova leva se comprovasse ter utilizado a anterior. Agora, o limite é de 600 munições por ano. Um único treino consome entre 200 e 400. Além disso, os clubes não conseguem mais comprar munição para revenda em competições. Antes, um atirador podia levar só a arma até um evento, adquirindo no local a munição utilizada na prova. Agora, ele precisa viajar transportando essa munição.
Entidades do setor esportivo tiveram agenda ontem (7) com o secretário nacional de Segurança, Tadeu Alencar, para levar os pleitos dos atletas de alto rendimento, que vivem uma contradição governamental. Ao mesmo tempo em que estão tendo dificuldades para treinar, são incentivados a buscar resultados a partir de programas como o Bolsa Atleta, o Bolsa Pódio e apoio direto do COB e do CPB com recursos das loterias federais.
Como era antes?
O Exército, que controla a aquisição de armas e munições no Brasil, ao menos desde 1999 dá acesso mais amplo a munição ao atirador esportivo que participa de competições e, por isso, tem uma rotina de treino. Na virada do século, por exemplo, o atirador “em plena prática do esporte” podia comprar até 2 mil munições por mês.
No governo Michel Temer (MDB), essa regulamentação foi detalhada, com os atletas sendo divididos em três níveis. Os que estavam no último patamar e comprovassem participar de no mínimo quatro competições por ano, podiam adquirir até 40 mil munições/ano. Sob Jair Bolsonaro (PL), esse limite caiu para 5 mil munições, com renovação analisada caso a caso pelo Exército.
Bolsonaro, porém, publicou dez decretos e 14 portarias dando novos regramentos e, na prática, facilitando a aquisição de armas e munições pelos CACs. Entre setembro e novembro do ano passado, foram registradas, em média, 2 mil novas armas por dia por esse grupo. Em todo o ano de 2015, por exemplo, tinham sido 10 mil registros. Até agosto de 2022, tinham sido registradas no ano 207 mil armas.
O novo governo entende que esse crescimento aconteceu de forma descontrolada. Um exemplo foi a prisão do ex-deputado Roberto Jefferson com quase 8 mil unidades de munição.
Como ficou após o decreto?
O decreto 11.366/2023, simbolicamente escolhido para ser um dos primeiros atos do governo Lula, diz que “os atiradores e os caçadores proprietários de arma de fogo poderão adquirir, no período de um ano, até seiscentas unidades de munição para cada arma de uso permitido registrada em seu nome.” São raros os atletas de alto rendimento que têm mais do que duas armas da versão utilizada na respectiva prova.
O decreto abre uma exceção: “o Comando do Exército pode conceder autorização para aquisição de munições (…) em quantidades superiores (…) para escolas e clubes de tiro, desde que comprovada a necessidade em razão da quantidade de alunos ou de associados”. Mas isso depende de uma regulamentação do Exército, que não tem prazo para acontecer.
Atletas prejudicados
Jodson Edington, presidente da Confederação Brasileira de Tiro Esportivo (CBTE), entidade responsável pela administração das modalidades olímpicas de tiro esportivo no Brasil afirma que a restrição de compra de munição está prejudicando a preparação para o Pan de Santiago e para os Jogos de Paris, O decreto, na sua forma original, não contemplou o trabalho dos atletas olímpicos.
“O Emerson Duarte, que está na equipe que vai para os Jogos Pan-Americanos e compete na pistola de tiro rápido, dá de 200 a 400 tiros por dia de treinamento. No caso dele, ele até tem estoque do ano passado, mas, para poupar para as competições, ele acaba não treinando”, diz Edington.
Cassio Rippel, campeão do Pan de 2015, conta que teve que trocar treinos com munição pelos simulador virtual, para poupar visando competições. “O simulador é necessário para o aperfeiçoamento mas não substitui o disparo real, pois um ponto importantíssimo do fundamento é o recuo da carabina. Se não disparo real não tenho o recuo e o acompanhamento do tiro. Sem isso nunca conseguirei disparar em alto rendimento e disputar de maneira justa com os demais atletas do mundo”, reclama.
Das 15 provas olímpicas do tiro esportivo, nove são disputadas com armas de uso controlado, de calibre .22 e .12, afetadas pelo decreto. No tiro ao prato, por exemplo, em um fim de semana de competição, um atleta que compete nas três provas do calendário nacional usa ao menos 450 munições. Com o limite de 600 por ano, ele não consegue sequer se inscrever em um segundo torneio.
O Brasil tem diversas confederações de tiro, que abarcam mais de uma centena de provas. As olímpicas ficam sob a tutela da CBTE, única filiada ao COB, que tem cerca de 4 mil atletas, incluindo os de provas que não são disputadas em Jogos Olímpicos. No esporte paralímpico, o tiro está sob a tutela do próprio CPB.
O setor reclama sequer foi incluído no grupo de trabalho criado pelo decreto para regulamentar o Sistema Nacional de Armas. “A única entidade do terceiro setor incluída foi a Sou da Paz, que é ativista, que é contrária às armas, tem que participar mesmo, mas precisa ouvir o que têm a dizer as entidades esportivas. Isso é descaso com esporte medalhista olímpico. Estamos muito decepcionados”, critica.
Mais queixas
O decreto presidencial transformou as armas de ar comprimido, utilizadas nas outras seis provas do programa olímpico, incluindo a que deu a prata olímpica a Felipe Wu, em PCE (Produto Controlado pelo Exército). Para transportar uma dessas armas, agora é necessário portar uma guia. Mas, segundo Edington, o Exército não tem fornecido o documento, já que não há regulamentação.
Outro problema, segundo os atiradores, é a limitação de compra de munição por parte dos clubes, que só podem adquirir o equivalente à cota mensal de cada atleta (logo, 50 munições). Uma única prova de skeet, por exemplo, envolve 125 tiros.
Se antes os atiradores compravam a munição no próprio clube onde estava sendo organizada a competição, agora eles precisam transportar os cartuchos. “Ele não compra para levar para casa, compra para consumir na competição. Agora, ele tem que levar de casa, colocar no carro, no avião. Sem contar que 450 munições de calibre 12 é muito pesado, impossível de transportar”, afirma o dirigente.
Outro lado
O Olhar Olímpico procurou o Ministério da Justiça, mas não obteve resposta. O Ministério do Esporte disse que ainda não foi procurado pelo COB, Confederação e nem pelas Forças Armadas para tratar do tema. “Estamos à disposição para tratarmos a temática com a urgência necessária”, afirmou a assessoria de imprensa. Já o COB afirmou que “está acompanhando, junto à Confederação Brasileira de Tiro Esportivo (CBTE), o andamento da questão.”